A urbanização é um processo radical de alteração da paisagem natural. Os estudiosos chamam esta transformação de “efeito antrópico”, ou seja, quando as modificações introduzidas pelo homem são de tal magnitude, que elas mudam completamente a paisagem natural.
Pode-se dizer que a atividade econômica e social, quando combinadas são uma força análoga à força da Natureza. Elementos como o clima, o curso dos rios, a fertilidade dos solos, entre outros são profundamente modificados por esta ação antrópica provocada pela urbanização. A modificação ou mesmo a criação de um microclima urbano é um dos efeitos mais sensíveis desta ação antrópica.
Costuma-se dizer que várias cidades na medida em que se expandem transformam-se em “ilhas de calor”, decorrentes da perda de cobertura vegetal, criando microclimas resultantes diretamente de fatores demográficos, como o aumento da população, dos fluxos de transporte e da atividade industrial.
“Antigamente, era mais Fresquinho, né?” Como surgiram as Ilhas de Calor
Segundo os antigos, os Rio de Janeiro já teve um clima bem mais agradável, a ponto de um dia ter caído neve em Marechal Hermes.
Por várias vezes, ouvi de moradores do Rio de Janeiro queixarem-se de que “no Passado não era assim”, que a temperatura durante o Verão era mais suportável, que o Inverno era mais frio, e que as chuvas não produziam tantos estragos. Será mesmo?
Foi tentando responder a esta pergunta que vários geógrafos no Brasil dos anos 70, interessaram-se em estudar as modificações no clima, geradas pela urbanização.
Em 1976, Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, Geógrafo da USP, defendeu sua Tese de Livre Docência sobre a sua “Teoria dos Sistemas Climáticos Urbanos”, um modelo explicativo para as alterações ocorridas no Clima, decorrentes da urbanização. Para ele, as “Ilhas de Calor” de nossas grandes cidades são a representação mais acabada da interação entre a Sociedade e o Meio Ambiente.
Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro teve sua curiosidade despertada ao estudar os efeitos das enchentes e inundações em São Paulo nos anos 60. Em que medida a urbanização desenvolveria um tipo de clima diferente daquele observado no campo, perguntou ele. Era como se, ao adentrar no ambiente urbano, as massas de chuva se comportassem de uma maneira diferente, produzindo efeitos devastadores.
A teoria que criou as “Ilhas de Calor” pode ser considerada como uma das primeiras formulações cujo objetivo era mostrar que a alteração climática poderia ser resultado da ação humana. Mas o que seriam estas “Ilhas de Calor”? Grosso modo, são microclimas urbanos caracterizados pelo aumento da temperatura e pela sensação térmica de calor.
Os principais fatores para o surgimento destas ilhas são as obras de pavimentação e calçamento que isolam a terra, tornando o piso mais suscetível de absorver o calor, principalmente com o calçamento de asfalto. O crescimento de áreas urbanas, com predominância de cores escuras aumenta a absorção da radiação solar, elevando assim a temperatura.
A área urbanizada pode ser descrita como um ecossistema heterotrófico, que não consegue sintetizar o seu próprio alimento, necessitando de substâncias orgânicas fornecidas pelo ambiente. O “metabolismo” deste sistema portanto, é muito mais intenso, exigindo um fluxo maior de energia concentrada, uma grande necessidade de entrada de materiais e uma saída maior e mais venenosa de resíduos.
Se fossemos descrever as cidades como “organismos”, poderíamos dizer que elas mais se assemelham a colmeias, ou cupinzeiros, com a diferença de que elas, as cidades, drenam uma quantidade gigantesca de energia do entorno natural, mas não devolvem essa energia na mesma proporção.
O modelo explicativo de Climatologia Urbana significou no Brasil, no início da década de 70, a possibilidade de aplicar a Geografia Física a um campo que até então era marcado por abordagens socioeconômicas. Já se sabia que o processo de urbanização tinha implicações ambientais, algo explicitado pela poluição, o ruído, e eventos climáticos como enchentes e deslizamentos, com prejuízos materiais e perdas de vidas humanas.
Nos anos 70, a maioria das pesquisas relacionadas ao microclima urbano eram de origem europeia ou norte-americana. As cidades não eram considerados um objeto da climatologia. Nessa época, pesquisadores no Brasil e nos Estados Unidos, estavam interessados em investigar as interações entre estes dois sistemas, o físico e o humano.
O Clima, a História e os Historiadores
No início dos anos 70, historiadores como E. Le Roy Ladurie começaram a estudar a influência do Clima sobre a História.
A pesquisa histórica, com base em evidências buscadas em jornais, documentos históricos, etc é muito importante neste sentido. O clima e suas consequências para a economia despertaram também a atenção dos historiadores nos anos 50, mais precisamente pelos historiadores agrupados em torno da escola dos annales.
O primeiro a escrever sobre esta relação foi Emmanuel Le Roy Ladurie. Ladurie estudava as sociedades agrárias pré industriais, e estava consciente da importância do clima em vários aspectos destas sociedades. Secas, chuvas, nevascas poderiam afetar diretamente o desempenho das colheitas, desencadeando assim uma cadeia de outros efeitos. Epidemias, aumento da mortalidade, migração, inflação, revoltas camponesas estavam ligados às flutuações climáticas.
Em uma época em que se tornou comum “refutar” o Aquecimento Global, não custa lembrar que aqui no Brasil, há quase meio século atrás, pesquisadores já tinham construído uma sólida teoria baseada em evidências mostrando que, sim, a ação humana pode realmente provocar alterações no Clima, e elas muitas vezes não são nadas boas para nós.
A previsão de que em futuro próximo, os maiores centros urbanos do futuro próximo estarão na América Latina, onde o processo de urbanização forçosamente espelha uma trágica realidade socioeconômica, aumenta a importância do problema para nós. Por exemplo, as diversas mortes ocasionadas pelas enchentes não consideradas como um “problema social”, ou melhor, uma combinação da interação entre Natureza e Sociedade, mas como uma ação explicada puramente como fruto da ação “do clima”. Essa tem sido, por exemplo, a narrativa básica do governo da cidade do Rio de Janeiro, diante das mortes provocadas pelas chuvas das últimas semanas.
Quando a iminência de colapso de abastecimento de água ocorreu em São Paulo e no Rio de Janeiro, isto não foi considerado um problema social, ‘strictu sensu”, mas apenas um fenômeno “ambiental”.
*Paulo Roberto Araújo é professor de História e suburbano convicto