Eu estava na página do US Census Bureau, o órgão do governo federal que tem uma função muito parecida com a do IBGE, aqui no Brasil. Acredito que muitas boas histórias, talvez melhores do que aquelas ocupam as primeiras páginas de nossos jornais, estão escondidas nas montanhas de tabelas e gráficos produzidas por estas instituições.
Acredito também que a relevância das histórias que a gente pode desencavar destes números, não reside no fato de que estes sejam a “verdade” infalível, da qual não se pode discutir. Quando consulto estes dados, sempre procuro extrair algum significado humano por detrás de seus números, e geralmente encontro algum.
Pois bem, no site do US Census Bureau, li uma notícia que dizia mais ou menos o seguinte: em Dezembro de 2017, os Estados Unidos atingiram a marca de 90% de sua população adulta com mais de 25 anos de idade, com pelo menos o Ensino Médio completo. Isso significa que das 217 milhões de pessoas nesta faixa etária, aproximadamente 194 milhões possuem um diploma de nível médio ou superior.
Quando o Presidente Roosevelt declarou guerra ao Japão, depois do ataque a Pearl Harbor, em Dezembro de 1941, os Estados Unidos possuíam metade da sua população com mais de 25 anos, com o Ensino Médio concluído. O país perdeu mais de meio milhão de soldados lutando nas ilhas do Pacífico e na Europa, isso sem contar os feridos e os mutilados de guerra.
Enquanto isso, em casa, milhões de mulheres descobriram pela primeira vez, a realidade de trabalharem fora de casa. A fábrica da Revlon de cosméticos adaptou rapidamente as suas linhas de produção ao esforço de guerra. As mesmas fôrmas que antes fabricavam os batons foram convertidas para produzirem munição antiaérea, e é por isso que os batons até hoje possuem a forma semelhante a uma bala de metralhadora.
Mulheres também foram empregadas para montar aviões bombardeiros e tanques. Em plena guerra, uma turma de mulheres montava um bombardeiro inteiro, pronto para voar, em 2 horas de trabalho. Temos uma ideia muito vaga, desta realidade quando a TV paga exibe, de vez em quando, alguma série ou filme contando um pouco destas histórias, como no caso do seriado “Bomb Girls”, série canadense que contava a história de uma fábrica, onde somente mulheres foram empregadas para fabricar bombas.
Quando a guerra acabou, a imagem mais conhecida do fim do conflito foi a fotografia de um marinheiro americano beijando uma enfermeira na Times Square, em Nova York. Mas a realidade dos soldados que voltaram era bem diferente. Muitos ao regressarem, não encontraram uma esposa ou namorada para beijar. Na verdade, a maioria sequer tinha um emprego. Foi neste momento que o governo americano, sob a pressão de muitos protestos, resolveu criar uma lei, conhecida como “The GI Bill”, que garantia o acesso à educação aos veteranos de guerra.
Só então, o número de pessoas que possuíam o Ensino Médio aumentou de maneira constante. Os engenheiros que ajudaram a construir o programa espacial, que levou os Estados Unidos à Lua, os economistas que construíram a mais complexa economia do mundo, assim como os médicos que desenvolveram técnicas pioneiras, como o transplante de órgãos ou as pesquisas na cura de inúmeras doenças, foram formados nesta geração. Muitos estudiosos nos Estados Unidos dizem que este foi realmente o maior investimento em infraestrutura que aquele país realizou, em toda a sua história. A infraestrutura não eram rodovias, ferrovias, ou aeroportos, mas pessoas com uma educação melhor.
As histórias de homens e mulheres anônimos estão resumidas de alguma forma, naqueles dados. Então, digitei no teclado o nome do IBGE e resolvi ver o que aconteceu no Brasil na mesma época. O historiador francês Marc Bloch costumava dizer que a comparação era “a varinha de condão da História”, isso por quê por meio do exercício da comparação é possível desvendar fatos e padrões que muitas vezes permanecem ocultos à primeira vista.
Ora, se compararmos as duas histórias resumidas nos dados dos governos americano e brasileiro, veremos realidades muito diferentes que acredito nos ajudam a explicar muitas coisas.
No Brasil, segundo dados do IBGE, em 2016, cerca de 66,3 milhões de pessoas de 25 anos ou mais de idade (ou seja, 51% da população adulta) tinham concluído apenas o ensino fundamental. Além disso, menos de 20 milhões (ou 15,3% dessa população) haviam concluído o ensino superior.
Seguindo o conselho de Marc Bloch, se compararmos as realidades dos Estados Unidos e do Brasil, no que se refere ao acesso destas duas populações ao Ensino Médio, podemos concluir, sem muita dificuldade, que a quantidade de habitantes brasileiros que possuem o Ensino Médio em 2016, é praticamente a mesma daquela que os Estados Unidos possuíam, quando Roosevelt declarou guerra aos japoneses, em Dezembro de 1941. Ou seja, existe um “fosso” de quase um século separando a educação do povo norte-americano, daquela que o povo brasileiro tem acesso atualmente.
Isso tem inúmeras implicações. Significa que o nível salarial destas duas populações é fortemente impactado pela diferença de escolaridade nestas duas economias. Muito tem sido escrito e debatido ultimamente sobre a produtividade do trabalhador brasileiro e a influência deste fator na retomada do crescimento, mas muito pouco pode ser feito neste sentido, se investimentos muito grandes educação não forem feitos.
As desigualdades no acesso à educação no Brasil são multidimensionais, ou seja, são percebidas no que se refere ao sexo, a renda, a cor e também em nível regional. No Nordeste, 52,6% não concluíram o ensino fundamental, o que explica em grande parte, as diferenças de renda em comparação com outras regiões do Brasil. Menos de 10% (8,8%) dos pretos ou pardos com 25 anos ou mais, possuem nível superior, ao passo que para os brancos esse percentual era de 22,2%. Mulheres conseguem chegar ao nível superior(16,9%) com mais frequência do que entre os homens (13,5%).
Enquanto nos Estados Unidos, a evasão escolar vem diminuindo drasticamente, desde o ano 2000, no Brasil, 24,8 milhões de pessoas de 14 a 29 anos não frequentavam escola. Sair da escola no Brasil, é mais comum entre os homens (52,3%), sendo que mais da metade deles declararam não estar estudando por conta do trabalho, além de 24,1% não terem interesse em continuar os estudos.
Bem, se pensarmos que os Estados Unidos levaram quase 70 anos para fazerem com que sua população com Ensino Médio saltasse de 50% para 90%, como foi a marca atingida em Dezembro de 2017, fico pensando quanto tempo seria necessário para que algo semelhante ocorresse em um país como o Brasil. Muito provavelmente, eu não estarei vivo para testemunhar algo assim. Mais certo ainda, é que marca semelhante só será atingida no século XXII!
Todos estes números, quando comparados dão uma dimensão completamente diferente do nosso entendimento da História e do nosso lugar, nessa mesma História.
Realmente, Marc Bloch estava certo, se a História pode ser uma fada madrinha, a comparação será sempre a sua varinha de condão.