Rio de Janeiro, em alguma favela da cidade. Enquanto é filmada, uma senhora Mãe de Santo quebra com a próprias mãos, as imagens religiosas do centro de Candomblé do qual fazia parte há muitos anos. Em outro vídeo, que também correu pelas redes sociais como um rastilho de pólvora, um Pai de Santo, sob a ameaça de um suposto traficante tem de arrancar de seu corpo a guia que lhe serve de proteção espiritual.
Não foi a primeira vez que religiões de matriz africana foram alvo de perseguições. Na verdade, isso é tão antigo no Brasil como a própria história existência destas religiões. Mas um elemento aqui é novo. Agora, são os próprios membros da comunidade, na forma dos grupos de criminosos que controlam o local, que protagonizam estes atos de violência e intolerância.
No início do século XX, os terreiros de Umbanda e Candomblé encontraram na Polícia do então Distrito Federal um inimigo feroz. Na época, a repressão a estas práticas religiosas entravam na rubrica das “mistificações”, um jargão que juristas e policiais encontraram para associarem a ação de líderes religiosos ao falso exercício da Medicina.
Não era segredo para nenhum carioca, que desde o mais humilde morador ao “grã- fino” morador nos bairros nobres, iam ter com pais e mães de santo. As demandas eram muitas: o amor que se foi, o emprego que ainda não veio, o desafeto no trabalho, e assim por diante.
A autoridade destes pais de santo era reconhecida, ainda que não aceita pelas autoridades e parte da sociedade. A Polícia não deixava estas casas em paz. As invasões eram acompanhadas pelo mesmo quebra- quebra que hoje vemos nas redes sociais. O que restava era levado como “troféu” e passava a integrar o vasto acervo da Polícia do Rio de Janeiro, que hoje se encontra ameaçado de perder-se.
Sim, a repressão existia, as casas eram colocadas abaixo pelas forças policiais, no entanto, a autoridade destes líderes religiosos permanecia quase intacta. Para falar a verdade, em certas circunstâncias o poder simbólico de um Pai de Santo permanecia intacto, apesar da repressão policial.
Sua ascendência sobre a comunidade local era incontestável. Para os criminosos, a mediação destas autoridades espirituais era vital. Ouso dizer que para um bandido do Rio de Janeiro em meados do século XX, possuir o “corpo fechado”, ostentar uma guia de proteção no peito era tão ou mais importante do que a arma que ele carregava na cintura. Não foram poucas as vezes que bandidos conhecidos do Rio e Janeiro, como “Mineirinho”, “Cara de Cavalo”, entre tantos outros, foram pedir o aconselhamento, a proteção e mesmo a ajuda destes líderes espirituais.
Mas alguma coisa aconteceu, a partir do final do século XX. O processo de escalada da violência na capital do Estado, e mesmo no restante do Rio de Janeiro teve muitos desdobramentos, e um dos que estou analisando neste texto é este, o declínio e queda do “Pai de Santo” como autoridade nas periferias.
A cena corta para uma favela da Zona Oeste, onde um pastor evangélico ladeado por “soldados do tráfico” faz uma oração. No meio do ritual, o pastor com uma Bíblia na mão, estende a outra mão para cobrir a cabeça de um jovem, com um fuzil a tiracolo. Ao que o jovem protesta: “-Não coloca a mão na minha cabeça!”. A câmera do documentarista captou o movimento aparentemente banal, não fosse a força simbólica contida naquele gestual.
Ali, um rapaz que entrou “para aquela vida”, evocava uma antiquíssima tradição, a de reconhecer a importância da “cabeça” como guardiã da espiritualidade, lugar da morada dos “guias”. Não se sabe se aquele rapaz professava ou não alguma religião de matriz africana e para falar a verdade, isso não vem muito ao caso.
No século passado, as religiões afro não eram maioria, em um país visceralmente católico. A repressão, quando havia, vinha fundamentalmente de uma direção, e todo mundo sabia qual era: ela vinha do Estado, materializada no policial sempre em busca de evidências de que os terreiros fossem antros de charlatães, que se faziam de médicos para uma população pobre ignorante.
Mas hoje, a direção desta violência mudou e isto no meu entender, que dizer alguma coisa. A mais importante delas é a ascensão das igrejas evangélicas nestas áreas e o crescimento do poder dos líderes religiosos destas mesmas igrejas. Onde antes o Pai de Santo era respeitado e mesmo temido, o “Pastor” agora pontifica. Ele compete pelos mesmos fiéis, pelas mesmas demandas do povo, pretende resolver os mesmos problemas.
E é neste ponto que desejo apresentar ao leitor uma teoria, a de que a onda de intolerância religiosa, da qual as principais vítimas ultimamente têm sido as religiões de matriz africana é um reflexo de um processo mais complexo. Em minha opinião, o “campo religioso” pode ser entendido como um tipo de “mercado”, onde determinados bens simbólicos são produzidos e consumidos.
A tese que defendo na verdade não é nova, muito menos de minha autoria. Na verdade, nada mais faço do que usar a análise do sociólogo Antonio Flavio Pierucci, que investigou por muitos anos a dinâmica das religiões no Brasil contemporâneo. Segundo ele, a ascensão dos evangélicos pode ser explicada exatamente pelo fato de que o monopólio mantido pela Igreja Católica foi extinto, quando esta se separou do Estado, em 1889 ao ser proclamada a República.
Desde então, a hegemonia da Igreja Católica tem diminuído sistematicamente, ano a ano, como se pode constatar pelos dados dos censos decenais. Concomitantemente, novas adesões religiosas foram ganhando espaço, com destaque para as denominações evangélicas. Podemos deduzir que aquilo que vemos hoje como manifestações de “intolerância”, são na verdade os efeitos de uma forte competição que existe hoje dentro do campo religioso.
Nesta guerra por corações, mentes e almas, a violência explícita e intimidatória não está descartada, ao contrário, faz parte do processo e ousaria dizer que ela pode até aumentar. Como disse mais acima, não somos o único país a assistir isso.
A História está repleta de exemplos assim, onde a competição de religiões neste mercado de bens simbólicos explodiu em violência declarada. Por séculos, as bruxas sempre foram um tema interessante para a cultura popular. No cinema e na cultura em geral, a “bruxa” é uma metáfora daquela alteridade que geralmente temos dificuldade de suportar no outro.
Entre os séculos X e XV, a “bruxaria” era um assunto pontual para a Cristandade e para Igreja Católica. É bem verdade que Roma havia se manifestado sobre o assunto, quando o Papa Alexandre IV publicou um édito sobre a execução de pessoas acusadas de bruxaria. Mas, de uma maneira geral a Igreja não endossava a tese da existência de bruxas.
Não era assim que a população pensava, no entanto. Ao contrário da opinião de Roma, o povo acreditava e muito, na intervenção destes seres nos mais diversos assuntos, do fracasso de colheitas à infelicidade conjugal, além das inúmeras doenças atribuídas a elas.
Mas foi em meados do século XVI, que este quadro mudou completamente. Em 1550, as autoridades cristãs, católicas e protestantes admitiam abertamente a existência de bruxas. Agora, as “bruxas” eram numerosas, perigosas e estavam disseminadas em toda a sociedade. Segundo a mesma Igreja, havia bandos destas bruxas por aí e a missão da Igreja era proteger os cidadãos dos atos destas pessoas.
Relatos de vôos noturnos ou magia negra chegavam aos ouvidos eclesiásticos. Mas em 1100, por exemplo, o Cânon Episcopal atribuía estes relatos a alucinações, embora os teólogos explicassem tais delírios como obras do Diabo.
Foi a partir dos séculos XIV e XV, que a Igreja passou a atribuir uma existência às bruxas. Em 1398, os teólogos da Universidade de Paris concluíram que a feitiçaria era um tipo de “contrato com o Diabo”. Quase um século depois, em 1484, o Papa Inocêncio VIII publicou a “Summa Desiderantes Affectibus”, autorizando a violência contra feiticeiras e pouco depois, Heinrich Kramer and Jacob Sprenger publicaram o “Malleus Maleficarum”—o Martelo das Feiticeiras, um manual onde se ensinava como investigar e executar bruxas.
No distante passado da “caça às bruxas” encontramos também o contexto onde religiões entram em disputa pelo “mercado das almas”. O resultado, como se sabe, foi a grande perseguição que fez com que aproximadamente entre 100,000-110,000 europeus fossem julgados pelos crimes de bruxaria entre 1400 e 1750, sendo que por volta de metade deste número foi executada. Em uma contagem mais conservadora, este número pode chegar a 80,000.
Pois bem, só convidei o leitor para dar este passeio atravessando séculos para mostrar, por meio daquela “varinha de condão” tão valorizada por Marc Bloch, que a comparação pode nos levar a perceber que sempre haverá alguém a competir por nossos corações e mentes. E esta competição pode sim, desembocar em algo mais violento do que apenas uma proferir uma praga.