Por *André Cansado
As más-línguas dizem que vivemos tempos extremos, polarizados. Nova Era dos Extremos? Quem nos dera, vivemos os tempos da extrema direita. Na Venezuela (dita como uma das experiências mais avançadas da esquerda contemporânea) não há nenhum horizonte concreto de transição socialista. Enquanto a Síria fez uma transição temporária ao fascismo com o califado do ISIS, impulsionado pelo imperialismo, a Grécia de Tsipras caiu de joelhos diante do FMI em velocidade recorde, menos de um ano. Já os EUA tiveram o ápice de sua festa do chá ao eleger Trump, com todo o trocadilho psicotrópico que a situação exige, e o novo líder global se mantém firme no posto. Até mesmo o novo império em ascensão é um extremismo dúbio: uma avançada e mista economia capitalista dirigida por maoístas. Apesar, é claro, da China insistir que prepara uma transição gradual nunca antes vista.
Não podemos esquecer que a NEP leninista foi de grande influência ao fascismo. Não que a ladainha sobre nazismo ser de esquerda tenha validade sociológica, filosófica e historiográfica, mas existe um fundo de verdade nesse enunciado. A investida de Lenin no pós-guerra civil, embora corajosa como sempre, influenciou um tipo de política de Estado que deu suporte técnico ao fascismo. Mussolini diante da crise nacional e internacional italiana conseguiu se manter no poder adotando um capitalismo extremamente centralizado. Sem falar no roubo da publicidade bolchevique com intuito de cooptar a classe trabalhadora a esse tipo de governo. Mas aqui me desnudo de qualquer puritanismo ao experimentalismo revolucionário e às consequências dialéticas da luta de classes. O problema é a falsa radicalidade como modus operandi da teoria revolucionária. Um exemplo disso é o aceleracionismo chinês. A “Ponte Para o Futuro”, parafraseando o golpismo brasileiro, no seu sentido mais paradoxal. Os marxistas foram ao nível zero do capitalismo selvagem para um dia almejar o paraíso comunista. E por que estamos nessa situação? Paralisados mesmo nos movendo nas disputas institucionais, nos movimentos sociais, nas manifestações de massas, nas lutas armadas (não podemos ignorar o caso indiano apesar de suas incipiências) etc. Nosso problema é como a esquerda se move, ou melhor, como ela sempre se moveu e continua a se mover. No texto The Philosophical Roots of the Marx-Bakunin Conflict[1], Ann Robertson analisa as raízes das diferenças políticas entre Marx e Bakunin. Diferenças que geraram uma série de conflitos durante suas colaborações na Associação Internacional dos Trabalhadores. Logo no primeiro parágrafo a autora dá pistas sobre a chave do conflito:
(…) eles pareciam empunhar tanta energia se enfrentando quanto enfrentando seu inimigo comum, o sistema capitalista, culminando na campanha sucedida de Marx para expulsar Bakunin da organização. De vez em quando tendo relações cordiais, eles mesmo assim faziam taxações não muito elogiosas mutuamente. De acordo com Marx, Bakunin era ‘um homem desprovido de todo o conhecimento teórico” e que tinha “o elemento da intriga”, enquanto Bakunin acreditava que “o espírito da liberdade está ausente nele [Marx]; ele é da cabeça aos pés um autoritário”.
Essas linhas dizem muito sobre a história do pós-capitalismo moderno, mas dizem o que? Que a esquerda se nega a fazer o balanço de onde todos nós acertamos e de onde todos nós erramos. Onde esses erros e acertos podem convergir em uma visão renovada de comunismo (anarquistas também reivindicam o título de comunistas, como os “verdadeiros”)? Primeiro, é tradição da esquerda moderna projetar o comunismo como um “destino final”, ou seja, de uma forma ou de outra o estágio mais alto da emancipação humana viria pelo coletivismo econômico e político. As divisões nesses movimentos começaram exatamente nos caminhos para esse ideal. Mas e se invertêssemos essa lógica histórica? E se o nosso problema até hoje não for o caminho correto até o comunismo mas a sua própria visão de comunismo como fim da história? Bakunin e Marx sustentam uma visão que as ciências modernas não aprovam mais. Seu futuro estável não sobrevive aos avanços da psicologia atual, da neurociência, da ecologia, da física quântica, da astrofísica etc, da eterna inconstância dos nossos movimentos e dos movimentos do universo. Longe de ser uma simples abstração filosófica, o absoluto é nosso próprio interior e externo em abertura contínua. Os dois filósofos percebiam o absoluto em conclusão, típico da tradição positivista recente à época e da também recente saída de um mundo religioso. Homens com limitações materiais de seu tempo, como diria Engels, e eu acrescentaria limitações ideológicas. É esse fetiche no futuro que gerou tantas divisões em torno de um Real que todos dizem deter poder mas de uma forma microfísica, cada um com seu próprio falo. Mesmo o marxismo também se dividiu em milhares de correntes.
Slavoj Zizek, filósofo esloveno, em Menos que Nada tenta desmistificar o progressismo em torno da história da filosofia. O senso comum de que existe um curso de atualização constante da filosofia colocando todos os filósofos passados como ultrapassados diante dos novos. Para o autor essa atualização está inscrita na própria limitação da nossa percepção de uma realidade constante, é impossível se engajar na filosofia e se manter com um pensamento paralisado. O problema é a percepção de que existe um retorno à primordialidade nesse gesto, como se o pensamento avançasse em uma direção específica. Como solução ele coloca o tempo presente como a única leitura dialética possível, do passado com o futuro retroativamente. As percepções de passado e futuro são ficções por que nos ajudam a totalizar o Real em um significado. Porém não podemos investir nessas ficções como o próprio Real. Precisamos entender como cada autor pode dar sua compreensão de uma dimensão material presenciada por todos no eterno presente. É comum, por exemplo, dizer que Marx atualizou Hegel com o materialismo. Mas para Zizek a leitura que Marx faz de Hegel também carrega idealismos essenciais, pois não seria especificamente um progresso do pensamento dialético mas uma má interpretação dos insights materialistas em Hegel. Sua “atualização” do pensamento hegeliano não foi levada até as últimas consequências. Se Hegel é interpretado como o idealista absoluto, Marx continuou na mesma posição e transferiu a conclusão do absoluto para a materialidade.
Lenin deu o passo certo na direção errada com seu engajamento no marxismo. É necessário centralizar a luta revolucionária para organizar a tomada de poder. Mas que tipo de poder estamos falando? O poder onde o fim da luta de classes significa o controle do seu retorno ao Real como tal ou a luta onde o Real como tal é a limitação do sujeito como significante? É possível acabar com a luta de classes no sentido de prevenir seu retorno fora do nosso controle ou acabar com a luta de classes significa ter um sistema que saiba lidar com o seu retorno constante? Albert Camus fez um bom contraponto ao “subir a montanha novamente” leninista em O Mito de Sísifo. O engajamento do sujeito significa escalar uma montanha sem sentido, afinal não há ponto de referência no universo em que podemos significar o absoluto como um novamente. Mas essa limitação do ser diante do absoluto não pode ser simplesmente ignorada, ao contrário, em nós esse gesto de totalização acontece como um impulso transubjetivo. A força material da ideologia coletiva nos condiciona a isso. Mesmo o último homem do mundo não esqueceria o último homem do mundo. A única forma de ser realista é tentar o impossível diante desse impulso.
Marx decididamente foi um materialista nas disputas internas da Liga dos Justos pela elaboração do Manifesto Comunista. Não tentou uma intermediação dialética ou algo assim, enfrentou todos os que chamava de socialistas utópicos e suas visões idealistas do processo revolucionário e do pós-capitalismo. Da mesma forma Lenin se entrincheirou várias vezes no Partido Social-Democrata Russo, antes e depois da revolução. A lição que o marxismo aprendeu com Hegel é que existe um caminho certo a se seguir no contingente mas que a verdadeira escolha dialética é feita sobre a melhor forma de lidar com a escolha mais difícil. A história da social-democracia foi a história de um manto liberal pintado de tinta vermelha, exatamente por seguir a ilusão do “caminho do meio”. Todas as crises do capital colocam sua efetividade em cheque. A escolha acaba sendo seu oposto barrado ideologicamente pelo próprio sujeito. No caso da social-democracia: o capitalismo e o espectro de direita.
Precisamos impedir a mesma postura na esquerda. E isso significa repetir o iluminismo sem qualquer engajamento ingênuo sobre o absoluto. Repetir a Internacional voltando ao pé da montanha. Sabendo muito bem que a necessidade de fazer esse movimento novamente pode aparecer. Repetir o exemplo da primeira Internacional sem a ilusão de um grupo deter a visão do Real em si. Nietzsche é um bom exemplo para fechar esse texto, começou sua filosofia propondo martelar toda a sua história. Terminou seus estudos engajado em uma repetição existencial com o eterno retorno. O que nós precisamos é ter o mesmo impulso do primeiro Nietzsche com a clareza do último Nietzsche: o martelo do eterno presente.
[1]Pode ser encontrado neste site.
André Cansado é jornalista, músico escreve de dentro do coração da Babilonia (O Rio de Janeiro) para o Prensa.