Em 2022, foram registradas 265 tentativas de feminicídio e 97 mulheres foram mortas no Rio de Janeiro. Os dados, levantados pelo Instituto de Segurança Pública do estado (ISP), se referem ao período entre janeiro e novembro e apontam aumento de ocorrências desse tipo em relação aos anos de 2020 e 2021.
A pesquisadora Isadora Sento-Sé, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e que estuda o fenômeno no estado, explica que esses dados podem estar subestimados: “Vi casos que, a partir de protocolos internacionais, entendemos como feminicídio, mas não são denunciados como tal pela inexistência de relação íntima. Algumas delegadas de Delegacia Especializadas de Atendimento à Mulher (Deams) também ressaltam a necessidade de especialização na investigação de homicídios de mulheres, pois, segundo elas, crimes investigados como homicídio simples e até suicídio apresentam indícios de violência de gênero. Esse é um reflexo das políticas de austeridade que marcaram os últimos anos e que desmantelaram a rede de atendimento e esvaziaram as equipes”, afirma.
Sento-Sé acredita que seu estudo reforça um ponto observado em trabalhos anteriores sobre o tema: o predomínio da interpretação jurídica do feminicídio íntimo, praticado em relação conjugal. “A lei que cria a qualificadora tem dois incisos, o primeiro trata do homicídio contra a mulher por condições do sexo feminino, em contexto de violência doméstica e familiar; o segundo trata do menosprezo ou discriminação à condição de mulher. O que percebo é que aquilo que é investigado e denunciado como feminicídio são homicídios praticados por maridos, ex-maridos, companheiros, namorados; o que configura uma redução do fenômeno. Outro ponto é que a resposta penal favorece a individualização das condutas, muitas vezes ocultando o contexto e a estrutura que fabricaram a violência”, conclui a pesquisadora.
Medidas contra o feminicídio
A professora Maira Covre, do Instituto de Ciências Sociais da Uerj e orientadora da pesquisa de Sento-Sé, relata que até o final dos anos 1970, o crime ainda era tratado como tabu e que foi um avanço a sociedade ter retirado esse tipo de violência da esfera privada e familiar, reconhecendo-a como um problema político, de segurança e de saúde pública: “A homologação da Lei Maria da Penha, nº 11.340, criada em 2006 para coibir, punir e prevenir as violências contra a mulher, foi um marco importante nesse sentido. Após essa lei, outras conquistas no âmbito do direito das mulheres foram atingidas, como a lei nº 12.015, que alterou o Código Penal ao dispor sobre os crimes contra a dignidade sexual, ampliando as configurações do crime de estupro para além da ‘conjunção carnal’. Finalmente, a Lei do Feminicídio, nº 13.104, sancionada em 2015, que categoriza o feminicídio como homicídio qualificado e o inclui no rol dos crimes hediondos”.
Segundo Isadora Sento-Sé, uma CPI do feminicídio foi realizada na Alerj em 2019 e uma das principais propostas aprovadas foi a criação de um Observatório do Feminicídio no estado do Rio de Janeiro. Contudo, a lei de abril de 2022 (Lei Ordinária nº 9644, de autoria da deputada Zeidan) ainda não foi regulamentada. “Acredito que tendemos a dar muita ênfase às respostas penais, mas há outras formas de combate à violência de gênero e ao feminicídio que são preventivas, como a criação de mais equipamentos da rede de proteção, mais centros de referência, bem como investimentos naqueles que já existem. É também importante a elaboração de políticas públicas de produção e transparência de dados, daí a importância do observatório”, diz a pesquisadora.
Dentre as principais fontes sobre o tema estão o Instituto de Segurança Pública (ISP), com dados de inquéritos da Polícia Civil do Rio, ou o Atlas da Violência, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, baseados no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM/DATASUS) e no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde. Porém, para Sento-Sé, esses dados apresentam limitações. “Como o feminicídio é uma categoria penal, ela não consta nos atestados de óbito, fonte de dados produzidos pelo sistema de saúde. Dessa forma, os dados da saúde viabilizam uma aproximação ao analisarem os homicídios de mulheres nas residências, embora saibamos que, apesar do número de homicídios em casa ter muito mais vítimas mulheres que homens, nem todos os feminicídios acontecem no ambiente doméstico.”
Ainda de acordo com a pesquisadora, os dados refletem um registro e não necessariamente a realidade. Mesmo assim, apontam tendências, como, por exemplo, a de que conforme a violência se agrava, maior é a preponderância de mulheres pretas e pardas vitimizadas. Segundo Sento-Sé, isso acontece porque as mulheres de classe média, média alta e ricas acessam meios privados de resolução de conflitos, enquanto as mais pobres estão mais propensas a recorrer às delegacias. “A denúncia e a judicialização da violência não são sempre opções para mulheres mais pobres, principalmente aquelas que vivem em favelas, territórios onde a política e o poder Judiciário não costumam entrar para defendê-las. Isso é um problema quando temos como principal medida de prevenção ao feminicídio as Medidas Protetivas de Urgência (MPU), que são monitoradas pela Patrulha Maria da Penha. Quando a mulher mora nesses territórios onde o Estado se materializa de formas que não para garantia de seus direitos, essas formas de proteção não são uma opção ou são limitadas. Tudo isso cria um cenário de maior vulnerabilização dessas mulheres, daí a importância de centros de referência e de atendimento psicossocial”, explica.