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Memórias do Subterrâneo Sobre a atualidade de Frederik Douglass

 

“ O lugar de onde vim chama-se Condado de Talbot, no Estado de Maryland. Ele fica na costa Leste. Na época em que cheguei ao mundo, aquilo era um canto do mundo com pouca gente e que chamava atenção somente pelo fato da terra já estar gasta e arenosa, mais parecendo um deserto. Seus moradores eram inexpressivos e as febres e outras doenças grassavam por ali. Era um lugar de terras ruins, com uma vizinhança que era a mesma coisa, margeado pela encosta do rio Choptank, de águas barrentas e corrente preguiçosa. A população ribeirinha em volta era de brancos pobres, preguiçosos e beberrões contumazes. Os escravos eram tão ignorantes e indolentes que estavam satisfeitos com tudo aquilo à sua volta. E foi neste meio que eu, inocente de tudo o que passava à sua volta, cheguei ao mundo e passei a maior parte de minha infância.”

Assim começam as aventuras de um certo Frederick Douglass, um ex-escravo do Sul dos Estados Unidos que transformou sua vida em obra, para que a campanha do abolicionismo americano chegasse ao maior número possível de ouvintes. No fim de novembro, mais precisamente no dia 20, comemora-se no Brasil, o “Dia da Consciência Negra”. Fiquei tentado a escrever alguma coisa para o dia, mas mudei de ideia. A quantidade de posts em redes sociais, matérias de televisão, rádio e jornal, não justificavam que escrevesse qualquer coisa a mais sobre o assunto. E no entanto, folheando os livros de minha estante, percebi que alguma coisa ainda poderia ser dita sobre o assunto.

Por isso, prefiro dar voz a um autor que soube como ninguém expressar o que a discriminação racial significou na sua vida, e na de tantos outros negros. Frederick Douglass não era brasileiro, era um escravo nascido em uma fazenda no Sul dos Estados Unidos, Em um livro autobiográfico, Douglas narra a sua impressionante trajetória, desde as inúmeras vicissitudes como um escravo que fugiu de seus donos, seu engajamento na campanha pelo abolicionismo americano, até chegar a ser assessor do Presidente dos Estados Unidos e mais tarde, embaixador americano no Haiti. Sua história, por si só, é impressionante e já se escreveu muito sobre ela nos Estados Unidos. No Brasil no entanto, são raríssimos os registros escritos de ex-escravos contando passagens de suas vidas. O analfabetismo maciço impediu que registros similares ao Frederick Douglass fossem encontrados no Brasil. A autobiografia de Douglass é também a escrita de um homem que foi testemunha, ou esteve muito próximo de eventos cruciais da formação da nação americana.

Douglass conta como o Sul dos Estados Unidos desenvolveu uma visão de mundo que justificava a escravidão, tendo como principal referência, a Bíblia. No “Sul Profundo”, nas fazendas do interior, os negros eram considerados pelos brancos como os “filhos de Cam”, uma alusão direta ao irmão de Caim, expulso do Paraíso por ter cometido o pecado original. Segundo esta interpretação da Bíblia, todos os que vieram da África, eram herdeiros deste crime original, e como tal, vieram à Terra para expiar seus pecados na condição de escravos.

Em suas memórias, Frederick Douglass fazia questão de mostrar que não se tratava de “lembranças de família”, mas da memória de sua condição. Douglass dizia que uma das características das lembranças de um ex-escravo era lembrar-se daquilo que ele não teve. “Não se pode pedir que um escravo tenha uma árvore genealógica”, comentou ele, com um travo de ironia. Pessoas de algum privilégio, podem dar-se ao luxo de terem tido um pai com que possam se lembrar, não é o caso de um escravo, escreveu Douglass. Escravos não se lembram de suas idades, pois não havia aquela preocupação em saber quando e onde um cativo havia nascido.

As mães contavam o tempo de vida de seus filhos, pelas estações do ano. Assim, a mãe de Douglass lembrou-se ele nasceu duas primaveras depois de seu irmão, e não fazia muito tempo, um filho menor pereceu no rigor do inverno de Maryland, o estado onde nascera. A bem da verdade, os donos dos escravos não viam com bons olhos, um forasteiro assuntar a idade de seus escravos. E, numa matemática meio assim, assim, Douglass julgava que tinha nascido lá pelos idos de 1817.

Douglass não nega que ele não teve uma família. Mas, ao longo de sua narrativa é como se ele mostrasse que existem famílias… e famílias. Do ponto de vista demográfico, é possível aferir que a existência de um pai, de uma mãe, de avós e mesmo de filhos escravos em uma fazenda pode ser considerado numericamente como uma “família”. Até aí, tudo perfeito. Mas Douglass pergunta : mas afinal, de que famílias estamos falando? No condado onde nasceu, ter um pai entre os escravos era coisa rara. Ele se referia não ao fato biológico da paternidade, mas aos vínculos sociais que conferiam a um pai o papel de “marido”. Esta é a característica de sua escrita, ele tenta demostrar que a instituição da escravidão minava a existência da família enquanto instituição, e por “instituição” ele queria dizer a existência de vínculos estáveis. Era isso o que ele queria mostrar. Filhos, esposas e maridos existiam no contexto da escravidão, mas ele sequer conhecera seu pai a ponto de reter alguma lembrança dele. Sua mãe era uma memória vaga e que morreu pouco depois dele a conhecer. A única coisa que ele comentou dela foi o fato de que ela era única escrava em todo o condado, que sabia ler escrever.

Seus irmãos, ele veio a saber que eram de “todas as cores”, inclusive um “quase branco”. É interessante comparar esta narrativa com aquelas que descrevem a construção de uma atmosfera de intimidade típica de uma família vitoriana. A mensagem que ele queria mostrar ao leitor comum era que a escravidão não deixava espaço para a construção de sentimentos como amor, afeição. As pessoas passavam pela vida de Douglass, mas ele não conseguia fazer mais do que reter a passagem delas em uma folha de papel, e isso era tudo.

Douglass descreve a geografia de sua terra natal, como uma terra desolada, exaurida por décadas de cultivo de grandes plantações. A terra estava gasta, e os homens também. Seus avós estabeleceram-se como sitiantes em uma fazenda no condado. Betsey e Isaac Bailey, não moravam em uma senzala, mas em uma cabana separada da residência do proprietário daquelas terras. Segundo ele, sua avó dava-se por muito satisfeita por não ter de passar horas nos campos plantando e colhendo batatas. Suas tarefas resumiam-se a cuidar dos filhos da família dos seus donos e cuidar também de seus filhos.

 

A narrativa de Frederick Douglass descreve um mundo que oscilava de uma aparente tranquilidade à extrema crueldade, que podia se manifestar com um estalar de dedos. Nada naquele mundo era estável, tudo era movediço, como a terra arenosa do condado em que nasceu. Um belo dia, sua avó, que criara cinco filhos com trabalho, pesca e batata doce, soube que ela seria vendida para um fazendeiro estabelecido longe dali. Sua avó teria de se conformar em ver seus filhos apenas nos finais de semana, e mesmo assim em circunstâncias bem restritas. Arriscando uma explicação sobre os efeitos psicológicos sobre pessoas que eram criadas neste tipo de ambiente, Douglass mostrava que estes indivíduos, de alguma maneira, tinham dificuldades em criar vínculos mais duradouros, já que uma experiência anterior havia lhes ensinado que não valia a pena investir afetivamente nestes vínculos.

Frederick Douglass deliberadamente tenta mostrar a seu leitor que “ser um escravo” era entrar em um mundo completamente diferente daquele que ele estava acostumado. Para nos convencer da iniquidade daquela instituição ele não tenta mostrar o quão ela era ‘atrasada”, comparada ao capitalismo industrial do Norte dos Estados Unidos. Embora o livro tenha sido escrito em uma época em que as estatísticas estavam se tornando cada vez mais comuns como recursos retóricos de imparcialidade, não há um único exemplar destas estatísticas em todo o livro de Frederick Douglass. Ele se valeu de uma narrativa a partir da perspectiva de quem entendeu a escravidão a partir de “dentro”. A força do seu livro se assenta nesta característica, e Douglass sabia disso. De certa maneira, é como se ele soubesse que tratando de temas familiares a um leitor de classe média seria mais fácil consquistar a sua adesão. Se você quiser que alguém goste do que está escrevendo, conte-lhe uma história. Ela, a história, é soberana, e está acima de quaisquer recursos gráficos e visuais utilizados como complementos de uma narrativa.

Em uma quase antecipação daquilo que Simone de Beauvoir escrevera em “O Segundo Sexo”, ao afirmar que nenhuma mulher nasce mulher, mas torna-se mulher, Douglass mostrava que a condição de escravo não se reduzia apenas ao Direito ou à Economia. Ele foi descobrindo quando criança que não apenas a casa onde morava não era de seus pais ou avós, mas eles mesmos não donos de suas vidas Ninguém puxou-lhe pelo braço e ensinou isso, ele foi descobrindo a cada choque que recebia enquanto morou naquela fazenda. Da mesma maneira, ele nunca tinha posto os olhos naquele que diziam ser o “senhor “ de tudo e de todos naquelas terras. Ele nunca tinha visto o proprietário da fazenda, mas aprendeu a temê-lo, ouvindo a maneira cautelosa como o seu nome era pronunciado por seus pais.

Frederick Douglass escreveu suas memórias sobre a escravidão a partir da perspectiva da Casa Grande, mas o que viu e ouviu estava muito longe do que outros autores tinham registrado. Não, não existia cordialidade na Casa Grande e a escravidão era tão cruel quanto aquela das plantações de algodão e arroz.

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Algum tempo depois, um outro grande escritor, desta vez brasileiro, escreveu as suas memórias deste mundo subterrâneo, onde habitam pessoas sem voz e vez. Chamava-se Lima Barreto e escreveu sobre a loucura, a marginalidade e o silêncio. Suas vozes ainda hoje, merecem ser ouvidas.

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