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Nosso Homem em Nuremberg*

Filinto Mulle - Foto Blog do Henock
Filinto Mulle - Foto Blog do Henock

 

 

O sol já estava no céu naquele dia claro de verão, 11 de julho de 1973. Paris aparecia lá embaixo, enquanto o avião da Varig RG-820 dava voltas, esperando que a torre de comando do aeroporto de Orly liberasse a aterrissagem. Era mais um dia de rotina na vida do piloto Gilberto Araujo e sua tripulação. À bordo, mais de 100 passageiros brasileiros que embarcaram com destino à França.

Filinto Mulle – Foto Blog do Henock

Um deles olhava pela janela a cidade ficar cada vez mais próxima. Sentado em uma poltrona, ele passava despercebido, ao contrário de outro passageiro, o famoso cantor Agostinho dos Santos, sucesso nas rádios do Brasil, desde os anos 50. Aquele passageiro tinha lá seus motivos para gostar do anonimato, ele atendia pelo nome de Felinto Stubring Müller, ou apenas Felinto Müller, e tinha consciência que de uma maneira ou de outra, entrou para a história recente do país.

Getúlio Vargas (foto), o caudilho gaúcho, teve ajuda de Mulller para derrubar o governo de Washington Luiz e com isso por a última pá de cal na republica velha

Na década de 30, Felinto Müller cerrou fileiras junto aos Tenentes.  O fracasso do movimento rendeu-lhe a perseguição política em Mato Grosso, terra em nasceu, mas mesmo assim em 1930, apoiou Getúlio Vargas na derrubada do governo Washington Luís, ajudando a colocar uma pá de cal na República Oligárquica brasileira.

O apoio que empenhou a Vargas não foi em vão. O caudilho gaúcho recompensou a lealdade com o cargo de Chefe de Polícia do Rio de Janeiro, então Distrito Federal. Para a época, não era pouca coisa. Felinto Müller passou a estar à frente da Polícia do Rio de Janeiro que para o bem ou para o mal, servia de parâmetro de comparação para que os outros estados adotassem as suas políticas de segurança. Não existia ainda, uma Polícia Federal, com uma área de atuação nacional, órgão criado somente em 1964.

No início do século XX, o Rio de Janeiro, e pouco depois o Estado de São Paulo, foram os pioneiros em criar departamentos destinados exclusivamente aos crimes de natureza política.

A então capital da República era uma cidade basicamente industrial, cheia de imigrantes oriundos de vários cantos do mundo, o ativismo político há muito despertara a atenção dos órgãos de segurança. Anarquistas, monarquistas, comunistas, integralistas e mesmo alguns simpatizantes do nazismo promoviam reuniões, passeatas, encontros e manifestações, não raro dispersadas a poder de cassetete pela polícia.

A Marcha dos 18 – Orla de Copacabana – marco do levante tenentista

Quando Arthur Bernardes assumiu a Presidência da República, em meio à crise política provocada pelo movimento Tenentista, ele não teve muito constrangimento em tomar duas decisões, assim que sentou-se na cadeira de Presidente, no Palácio do Catete. A primeira medida foi decretar estado de sítio, que ficou em vigor por todo  o seu mandato, e a segunda foi criar um departamento de polícia política na Polícia do Distrito Federal. É bem verdade que nas mãos de Arthur Bernardes, o órgão não era mais do que uma forma do governo eliminar os inconvenientes de uma oposição barulhenta, não raro tratada com a prisão em terras distantes, como o Norte do Brasil e trabalhos forçados.

Ao assumir como Chefe de Polícia Felinto Müller não alterou a estrutura básica da organização policial que passou a comandar. Em suas mãos, a corporação do Rio de Janeiro tinha a missão de manter as ruas seguras contra os crimes comuns, mas também garantir que a oposição, de qualquer espectro político seria eliminada sumariamente. Em 1933, ele criou uma Delegacia Especial de Segurança Política e Social. O nome não era apenas uma pompa burocrática. Na cultura policial da época, “segurança política e social” representava a competência para reprimir manifestações de oposição vindas da “direita” (a Segurança Política) e da “esquerda” (a Segurança Social), ou seja, ao governo Vargas não interessava depositar muitas fichas em nenhum destes movimentos para garantir apoio político.

Felinto Müller nunca escondeu sua admiração pela escalada do nazismo e do fascismo na Europa. Ele acreditava que ali estava o futuro da Segurança Pública, principalmente naquilo que dizia respeito à repressão aos crimes de natureza política. Para ele, as forças de segurança brasileiras não estavam preparadas para enfrentar o Comunismo. Ainda quando era um Tenente em luta contra a República Oligárquica fora testemunha da criação da Coluna Prestes, conhecia pessoalmente seu líder, Luís Carlos Prestes e sabia do que era capaz um movimento organizado.

Os acontecimentos na Europa mereciam dele especial atenção, principalmente as notícias sobre a atuação dos partidos comunistas nas grandes cidades do Velho Mundo. A luta política entre direita e esquerda em Paris, Berlim, Madri e Viena indicavam a ele que o Comunismo teria de ser combatido antes de tudo nas cidades, e não no campo. Ele deduziu que os policiais brasileiros deveriam ser treinados para isso, e resolveu enviar alguns agentes de segurança para a Alemanha.

Quando chegaram a Berlim, os policiais cariocas foram recebidos pelos comandantes da recém criada GESTAPO, sob o comando de Heinrich Himmler. Por mais de um ano, estes policiais foram treinados pelos alemães sobre as maneiras como os comunistas se organizavam e faziam sua propaganda política. Ao voltarem para o Brasil,  o capitão de polícia Felisberto Batista Teixeira trazia na bagagem, uma condecoração dada pelo próprio Himmler. Todos eles estavam ansiosos para colocarem em prática tudo o que aprenderam com os nazistas.

Na época esta era a parte, digamos, ‘política” da Polícia do Distrito Federal, mas havia uma outra, aquela ligada ao policiamento comum, que corria atrás do punguista de rua, do cafetão do Mangue e da Lapa, ou do ladrão de galinha. Esta banda da Polícia do Distrito Federal frequentava as notícias dos jornais da época por estar constantemente envolvida em casos de corrupção, geralmente de membros da corporação e os banqueiros do Jogo do Bicho.

Felinto Müller sabia perfeitamente que a mesma polícia que reprimia os comunistas em todos os cantos do Rio de Janeiro era também leniente com a contravenção. Nem ele, nem seus comandados viam qualquer contradição neste comportamento. A imprensa da época várias vezes tentou sem sucesso,  pregar-lhe a etiqueta de corrupto às costas.

O período em que Felinto Müller permaneceu como Chefe de Polícia do Distrito Federal serve como um excelente estudo para compreendermos um pouco melhor a importância da cultura organizacional como uma dimensão importante do comportamento de uma instituição. Combater o “Comunismo” e ser tolerante com a corrupção com o Jogo do Bicho eram elementos que se complementavam no conjunto de valores que formavam esta cultura organizacional da polícia carioca.

A cultura de uma organização é formada ao longo do tempo e resulta de um processo de aprendizagem coletiva desta com o ambiente do qual faz parte. Embora à primeira vista os seus valores sejam contraditórios, são eles que fornecem aos seus membros os parâmetros pelos quais eles tomarão decisões em nome desta organização.

Em uma organização como a Polícia, isso se materializa em padrões de policiamento. Estes padrões não significam apenas as diretrizes formais que os policiais seguem a partir de decretos, circulares ou outros instrumentos administrativos. Eles também são formados pelo aprendizado de regras informais, da troca de informações com funcionários mais antigos. É este conjunto de regras, formais e informais que chamo de de ‘padrão de policiamento”. Creio que estudar os padrões de policiamento do passado ajuda e muito, a compreender o comportamento destas organizações nos dias de hoje.

Por toda a década de 30, a Polícia do Rio de Janeiro, sob o comando de Felinto Müller adotou o que podemos chamar de ‘método alemão” no combate aos inimigos políticos do regime. Este método consistiu em identificar minuciosamente os eventuais “suspeitos”, suas atividades e as vinculações destes indivíduos às organizações políticas. Era um nível de organização do trabalho policial que não existia naquela  corporação.

Pode-se dizer que durante este período, a polícia carioca profissionalizou-se, no sentido de racionalizar os seus métodos, mas os seus valores institucionais, pouco mudaram, ou seja, ela continuou a ser vista pela população como violenta e corrupta.

Hiltler- O nazismo serviu de inspiração para a polícia de Muller e seus conceitos estão arraigados na polícia do Rio até os dias de hoje

Mas, tudo mudou quando o governo Vargas aproximou-se da política externa norte-americana. Washington via com preocupação a movimentação de funcionários do governo brasileiro junto às autoridades alemãs.  O embaixador norte-americano James Caffery usou de toda a sua influência para retirar do comando da Chefia de Polícia Felinto Müller e colocar alguém de sua confiança no cargo, o General Alcides Etchegoyen. Foi a partir desta mudança que a polícia do Distrito Federal passou a receber cada vez mais, as visitas dos assessores do Federal Bureau of Investigations (FBI).

Desde esta data, um novo padrão se estabeleceu, os militares do Exército passaram a ter um papel cada vez mais importante na instituição, ao mesmo tempo que estes mesmos militares serviram de elementos de comunicação entre a corporação e as diretrizes que o governo norte-americano priorizou para o combate ao avanço do comunismo na América latina e no Brasil, em particular.

Toda esta história foi compilada e publicada por David Nasser, um jornalista que junto com o fotógrafo francês Jean Manzon revolucionou o jornalismo policial brasileiro no século XX. David Nasser publicou um pequeno livro, “Falta Alguém em Nuremberg”, relatando tudo o que Felinto Müller fez como Chefe de Polícia do Distrito Federal. O título era uma alusão ao julgamento dos crimes de guerra cometidos pelos nazistas, estabelecendo uma comparação entre a administração de Felinto Müller e os crimes julgados pelo tribunal alemão. Por várias vezes, David Nasser foi ameaçado pelo que escreveu.

-“Senhores passageiros do vôo da Varig RG-820, aqui é o comandante Gilberto Araújo, dentro de 15 minutos estaremos pousando no aeroporto de Orly, por favor, apaguem os cigarros e apertem os cintos. A Varig agradece a preferência, muito obrigado”.

Bombeiros retiram os corpos dos destroços do Boeing 707 da Varig, no vilarejo de Saulx-les-Chartreux. O fogo começou num banheiro

A voz metálica dos microfones interrompeu essas lembranças. Recostado em frente à janela, aquele senhor de olhar perdido olhava a paisagem. Os gritos no fundo do avião o tiraram de seu torpor. Em poucos segundos, uma grossa nuvem de fumaça tomou todo o avião. Pânico. Mal se via as pessoas correrem. Aí veio aquele som forte, o impacto e depois o silêncio. Felinto Müller sabia que aquilo era o fim. Como policial, ele aprendera que um dia, essa hora iria chegar. A fumaça branca cobriu seus olhos e pulmões.

O vôo Varig RG-820 sofrera um incêndio provocado por uma ponta de cigarro acesa no banheiro. Em chamas, o avião tentou pousar próximo ao aeroporto de Orly matando quase todos os passageiros e tripulantes.

No dia seguinte, sentado em sua casa no Rio de Janeiro, David Nasser lia a notícia da morte do antigo inimigo. Sentou-se na frente da máquina de escrever, encarou a folha branca e disse para si mesmo: “Bem, agora não falta mais ninguém em Nuremberg”

 

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*Este artigo é uma versão ligeiramente romanceada de uma pesquisa sobre a evolução cultura organizacional da Polícia do Rio de Janeiro. Os personagens e eventos embora verdadeiros, foram descritos de maneira “literária”, como um recurso expositivo. Opiniões, críticas e sugestões serão sempre bens vindas.

e-mail: robertoaraujo.techne@gmail.com 

 

Texto de opinião. Não corresponde necessária mente a opinião do Prensa

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