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Cidades

Doença dos ricos? Ou dos pobres?

“É uma doença democrática,” me disse o outro dia um velho amigo aqui em Búzios – por telefone, é claro. A gente não se encontra mais. Ele fica no confinamento da casa dele, eu na minha. “Parece que está afetando as pessoas aleatoriamente,” ele arrematou. “Sem preconceito.”

Os pobres em Londres durante a Grande Peste de 1665

Não quero instigar uma guerra entre classes, mas acho que o pequeno segredo sujo nesta hora é algo bem diferente: que o coronavírus está começando a assolar, e vai continuar a assolar, as pessoas menos favorecidas – eufemismo para pobres – muito mais cruelmente do que os mais abastados e os ricos. Talvez eu esteja errado, e espero que esteja errado. Com certeza, tem muitos motivos para não se chegar à minha conclusão. Primeiro motivo, muitos dos nossos “líderes” vêm pronunciando que estamos todos juntos neste desastre. (Sou americano de origem, e continuo acompanhando a situação no meu ex-estado de Nova York obsessivamente. Portanto, cito Andrew Cuomo, o governador de Nova York, e traduzo fielmente: “Qualquer um pode pegar esta doença. Pessoas relativamente jovens, pessoas fortes, pessoas que tomam muitos comprimidos de vitaminas, pessoas que frequentam a academia assiduamente.” Ou numa outra ocasião, porque é um tema dele: “É o grande igualador. Não importa o quanto inteligente, o quanto rico, o quanto poderoso você acha que você é. Não importa o quanto jovem, o quanto velho.”) Além disso, o Principe Charles pegou. O ator americano, o quase príncipe Tom Hanks, pegou.

O metrô de Xangai numa foto recente
 O metrô do Rio de Janeiro numa foto recente

Quando o vírus iniciou seu percurso pela Itália, bateu primeiro, e com a força de um furacão, no Norte, na Lombardia, a parte mais rica da Itália – e, efectivamente, uma das regiões mais prósperas do planeta. Nos EUA, bateu primeiro, e também com força de furação, em lugares prospéros como as cidades de Nova York, Los Angeles e Seattle. A situação está aparentemente prestes a mudar, mas até agora as províncias, as áreas rurais, ou seja, as regiões menos endinheiradas, encontram-se na lanterna. Na América do Sul, as primeiras vítimas eram os ricos, inequivocamente. São elas que viagam e elas que trouxeram o vírus de volta nos seus pulmões, nas suas bocas, nas suas fossas nasais. Adorei, numa das reportagens sobre o surto no Uruguai, como a primaiera portadora do virus lá foi caracterizada como “socialaite/decoradora.” Qual o significado dessa maravilhosa barra? É “e”? Como, digamos, dona de casa e cultivadora de orquídeas? Acho que não. Acho que essa barra indica, na verdade, uma percepção bastante mordaz, mas vamos, por enquanto, deixar para lá. Todo mundo pode desconstruir essa maravilhosa barra por si só. Mais dois motivos para a impressão dos instintos democráticos deste vírus: os médicos, normalmente uma categoria economicamente privilegiada, estão caindo à direita e à esquerda. Sobre tudo no começo do surto, foi alardeado em toda parte que as pessoas mais vulneráveis eram os idosos, independentemente da classe, e os imunocomprometidos, ou por obesidade ou diabetes ou qualquer outra condição crónica, mais uma vez independentemente da classe.  

Muito tempo vai passar antes de termos acesso a relatórios detalhados sobre a epidemiologia social desta doença, principalmente porque a doença está longe de ter realizado toda a sua devastação; essa epidemiologia social não acabou de evoluir. É possível também que tenhamos que ler nas entrelinhas para entender a distribuição da doença entre as várias camadas sociais mesmo quando esses tratados epidemiológicos sairem. É claro, não obstante, que o mundo está enfrentando duas crises simultaneamente. Primeiro veio a crise de saúde. Segundo veio a crise econômica. A segunda, a econômica, foi provocada em grande parte pela primeira, a de saúde, mas pouco importa para as pessoas que vivem de salário em salário. Elas serão os grandes perdedores em todos os campos. Não tendo poupanças, só tendo dívidas, elas poderão se considerar felizardos se não forem despedidas dos seus empregos – se, por acaso, tivessem empregos. Mas que estranha felicidade! Nas grandes cidades, essa massa de pessoas continuará pegando os transportes públicos e, deste modo, aumentando a sua exposição à doença carregada por outros passageiros e aumentando também a sua ansiedade. Durante o dia laboral, essas pessoas sofrerão mais exposição. 

Numa página na Internet, encontrei o parágrafo seguinte: “Em Miguel Pereira, sul do Estado do Rio de Janeiro, uma senhora de 63 anos veio a óbito infectada pelo novo coronavírus. A mesma continuou a trabalhar como empregada doméstica na casa de sua empregadora, no RJ, que já havia sido diagnosticada com o COVID-19, ao voltar de uma viagem à Itália.” O parágrafo apareceu num abaixo-assinado sob o título “Quarentena Remunerada Já Para Domésticas e Diaristas!” Tudo bem. Mas que tal os caixas e os repositores nos supermercados, os motoboys que fazem delivery para as pessoas que desfrutam do luxo de ficarem encasteladas atrás dos seus muros, os bombeiros, os policiais, as pessoas – aqui na Região dos Lagos, da Enel e da Prolagos – que garantem que a nossa energia e a nossa água fluam. Ao final do dia laboral, todas essas pessoas voltam às suas moradias, normalmente menos do que luxuosas e frequentemente superlotadas, e expõem os seus familiares aos mesmos riscos que elas enfrentavam no serviço – e sem o saberem por certo porque o período de incubação é longo. Imaginem a capacidade para a doença se alastrar nas favelas urbanas, nos campos de refugiados mundo afora, e nas prisões.

Além do mais, os ricos não estão sempre se comportando nesta conjuntura com a grande elegância que às vezes depõe em favor deles e lava pelo menos uma porção dos seus pecados. Li um artigo no The New York Times sobre uma ilha, provavelmente não tão paradisíaca quanto a nossa Búzios mas ainda assim uma ilha, a algums metros da costa atlântica da França. Durante a baixa temporada, esta ilha – por nome, Noirmoutier – tem uma população de mais ou menos 10.000 pessoas. Mas a distância entre Paris e a ilha pode ser percorrida em nada mais do que cinco horas, e por esta razão um bocado de parisienses bem comme il faut tem casas de veraneio lá. A França, como todos que acompanham as notícias sabem, decretou regras de autoconfinamento logo depois do vírus bater lá como o martelo que é. Resultado: os parisienses, alguns deles com as suas pranchas de surfe, embarcaram para a ilha de carro ou de trem. O prefeito tentou fechar a ponte que dá acesso desde o continente. As autoridades nacionais declararam a medida ilegal. A população da ilha saltou para 20.000. Além disso, os parisienses se dirigiram diretamente às praias como se estivessem de férias. E, como relata o “The Times”, os parisienses, quando não mergulhando ou praticando kitesurf, começavam a explorar abusivamente o comércio da ilha. Uma parisiense saiu de uma padaria com 20 baguetes. (Custa-me digitar “baguete” e não “baguette” e “o ‘The Times’” e não “o ‘Times’”, mas curvo-me diante do uso local.) Num supermercado, um (ou uma) parisiense – o inglês do “The Times” não faz a distinção – encheu seu carrinho com mantimentos com um valor de $325, ou seja, aproximadamente R$1700 – pelo padrão local, uma fábula; e os parisienses fazem questão de sair com os maiores alhos-porós e os melhores vinhos e queijos. 

Prepotência? Egoísmo? Incapacidade, também uma vergonha, de entender e interiorizar a gravidade desta situação inédita? Estaria estupefato pelos acontecimentos na ilha de Noirmoutier se não lesse relatos semelhantes saindo da Itália, da Inglaterra, dos EUA e alhures. E obviamente, quando se trata de prepotência, nenhum país chega aos calcanhares do nosso querido Brasil. Há pessoas – entre elas, amigos meus – que acham que este coronavírus, e os novos comportamentos que ele está provocando enquanto corta o seu caminho de destruição, resultarão em mudanças duradouras. Pode ser. E vamos esperar que, se mudanças acontecerem, essas mudanças são positivas. Mas nada é garantido, e a humanidade, como muitos outros sistemas, tem uma tendência a voltar para as configurações da fábrica. Essas desigualdades sociais em particular são muito tenazes, se não intratáveis. E tem pessoas que dizem que fazem parte da estrutura da realidade . . . ou que refletem a vontade de Deus. Mas, realmente, não chegou a hora para fazermos algo radical a respeito dessas desigualdades feias e injustas – se não hoje ou amanhã, um século destes?

Este é um artigo de opinião de responsabilidade do seu autor e não representa necessariamente a opinião do Jornal.

Mark Zusman é jornalista e, sim, ele é americano e mora em Búzios-RJ

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