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Cidades

Cada coisa na sua coisa, já dizia quem falou

Samir

 

Copia da publicação original

Era ainda 18h30 quando o telefone tocou e Marcelo (Lartigue) me pediu que fosse aos Ossos¹ entrevistar um mago argentino que acabava de chegar de Buenos Aires para uns dias de folga em Búzios.

O Samir é um cara rico, podre de rico, e ficou assim, nesse estado de riqueza, enganando as pessoas. Não com sua magia, a magia é verdadeira. Ele ganhou grana enganando as pessoas de que elas tinham alguma doença. Como assim? Simples, ué, não tem nada de mais nisso.  As escolas, igrejas e governos fazem isso a séculos. Enganam as pessoas de que elas precisam serem curadas, salvas, educadas e disciplinadas. E em torno de todas essas privadas há magia, há sacerdócio, mestres e salvadores da pátria. Filhos da puta apenas.

Em agosto aqui em Búzios venta pra caralho, e pensei: “Foda ter de ir aos Ossos a essa hora  pra entrevistar a porra de um charlatão argentino. Filho da puta esse Marcelo.”.

Saí de casa atrasado, acho que já eram umas 20h, me sentei no ponto de ônibus do Colégio Nicomedes e esperei pela van. Na carroça motorizada, onde já me acostumei a ser tratado como um cachorro – assim como já me acostumei também a ser tratado assim por médicos do SUS, advogados, policiais e donos de botecos.  O Motor² disse:  “Essa cidade está com cheiro de sangue, sinto isso no ar; sangue mesmo. Peço todos os dias que Jesus volte logo e resolva esse lodo que a cidade, que o mundo, se tornou. É filho matando pai, e pai matando filho. Certo são aqueles países do Oriente Médio em que se o cara rouba perde a mão. Se mata³ é morto também. ”.

Concordei de imediato com o motorista e segui firme: “Sim, sim, eu concordo com você. Se fuder com a mulher dos outros tem que ter a rola cortada fora. Se furar fila tem que ter a coxa furada. Se a van parar fora do ponto tem de ter os pneus furados. Se der o troco errado tem de ser estapeado. Se oferecer uma grana pro policial liberar o carro irregular, tem de ser emrabado.  Se…”.

Eu poderia ter ficado horas listando a minha Lei de Talião particular, mas o motorista, horas atrás tão zeloso com a ordem e a moral, agora estava incomodado com a minha doentia visão de justiça.

Crente falso do caralho! Se ele fosse de Jesus mesmo não teria pena desses marginais que subornam, param fora do ponto, dão troco errado, e furam fila. Não é mesmo?

Desci no ponto do Pinguim³ e fui andando beirando a lagoa de águas cor e odor de merda dos Ossos. Uma vez neste mesmo lugar me lembro de ter visto um homem que puxava uma mula pela corda. A mula seguias obediente, tinha a cabeça baixa.  Tive pena da mula. Não, eu tive foi compaixão da mula. Afinal o que nos separava um do outro? O fato de eu tinha todos os dentes e ela não? Não termos nascido na mesma cidade nos fazia diferentes? Claro que não.

Me lembrei até que já a conhecia. Uma vez na igreja nos sentamos lado a lado, quietos, assistindo a missa.

O padre falava de pecado, coisas que padres e pastores gostam de falar. Magia pra controlar pessoas.

Entre levantadas, sentadas, ajoelhadas e muitos améns, nós nos olhamos rápido. Ela, a mula, não parecia ser mais humana. Tão cheia de crenças que não lhe restava espaço para a fé. Nunca tinha visto Deus, aposto.

Já era por volta das 22h quando finalmente me sentei ao balcão do Sushi Jardin – do Zé Itajaí, e lá fiquei esperando por Samir, onde um russo me disse que lá em sua aldeia, nos confins gelados da Sibéria, conheceu um homem que era garoto querido e que se tornou líder, algo como prefeito do distrito de onde fazia parte sua aldeia, seu bairro. Com o tempo achou que conhecia bem a sua cidade. Só conhecia seu bairro. E governou toda cidade como se fosse seu bairro por mais de 10 anos. Um outro homem havia surgido, essa era do povo, era popular. Havia aprendido a pouco a comer de garfo e faca. Mas de nada adiantou tanto refino, sofria de uma moléstia: só se acalmava com chá de folhas de cheque.

Para redimir aquela aldeia chegou  forasteiro garboso, dado com doutor tamanha estampa. Todos os Macunaíma e caramurus lhe renderam homenagens. Ele, o belo, acreditou que era mesmo um deus, um salvador. Se fudeu de verde e amarelo. Ele e todos ao seu redor já são bem crescidinhos e deveriam saber que não existe salvadores.

Comi de uma só vez a peça de sushi  e tomei o saquê (bebida ruim do caralho) que me foi oferecido, e fiquei aguardando pelo Mago Samir.


 

Nota: Matéria em estilo gonzo publicada originalmente em agosto de 2014 no extinto semanário satírico O Perú Molhado. O fato que me levou a republicar o texto aqui é apenas por ter encontrado este exemplar enquanto procurava alguns documentos em uma caixa velha.  Na capa há uma foto do editor Marcelo Lartigue, o que me levou a ter interesse maior em folhear o jornal velho, aí encontrei esse texto do qual nem mais me lembrava. Achei interessante mais pelo estilo que pelo conteúdo, que hoje considero por demais moralizante ou moralizador.
¹ Ossos –  bairro de Búzios
² Motor – gíria para motorista
³ Restaurante tradicional de Búzios que serve como referência local

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