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Cidades

“As filhas de Terra e os filhos do Reyno”.

“Aos vinte e oito do mes de novembro de mil e seis cento e setenta e sinco as nove horas da menhaã em esta igreja de Nosa Senhora da Asumpçaõ da cidade de Cabo Frio em minha presença feitas as tres admoestações e as mais diligenças como manda o sagrado conçilio tridentino, receby por palavras de presente com bensões a Joaõ Antonio viúvo que ficou de Maria Antonia filho de Joaõ Antonio ja defunto e de sua molher Antonia Nogueira naturais da cidade do Porto, baptizado em o dia de Nossa Senhora da Vitória, com Maria Dias Vieira, filha de Antonio Vieira e de sua molher Ilena Dias ja defunta, natural de Saquarema, districto desta cydade de Cabo Frio, de que assitiram as testemunhas, o ouvidor Sebastiam Ferraz, Joaõ Crisostomo, Joaõ Machado, Salvador Martins de que tudo fiz este termo em o proprio dia que asigney;

O vigario, e padre Joaõ Pereira”

 (A transcrição acima, é um registro de casamento realizado na paróquia de Nossa Senhora da Assunção de cabo Frio, no distante ano de 1678. Deixei a grafia no original.)

 

João Pereira veio de Portugal e já morava faz uns anos neste pedaço do Brasil, que chamaram de “Cabo Frio’. Corria o ano de 1678, fim do século XVII. Ele regularmente oficiava os seus serviços na capela da Nossa Senhora da Assunção, uma construção de taipa, modestíssima mas que o povo do lugar acorria com devoção digna de nota.

Estava ali para fazer o casamento de João Antônio e de sua futura mulher, Maria Dias. Fosse nos dias de hoje, a cena deste casamento estaria registrada em algum vídeo ou nas indefectíveis redes sociais, com todas as curtidas a que tem direito. Mas, naquele distante século XVII, a única referência que temos deste instantâneo do cotidiano da vida privada foi o registro feito pelo vigário João Pereira.

A maioria ali naquele casamento era de origem portuguesa. O noivo, nascido e criado na cidade do Porto, o pai da noiva, além das testemunhas presentes. Durante o período colonial, o casamento era o ato de consagração da mulher. Por meio destes registros paroquiais escritos por pessoas como o vigário João Pereira é possível ter uma ideia de  como viviam, amavam e morriam estas mulheres, neste fim de mundo para os portugueses, que era o Sul do Brasil.

Sair de Portugal e encontrar uma esposa do outro lado do oceano era prática comum entre os primeiros colonizadores europeus desta região. Muitas vezes, estes casamentos já vinham arranjados, resultado de meticulosas conversações entre as famílias, entabuladas na correspondência que cruzava o Atlântico. O “noivo”, filho de pais portugueses, vinha a este canto do Império Português “fazer a vida”, e isso significava, estabelecer-se na terra, arrumar algum ofício ligado ao comércio e produção agrícola e criar relações com os poucos, mas influentes membros da administração colonial portuguesa. Estes membros da administração portuguesa também não escaparam ao registro do vigário, pois foi assim que ele registrou a presença do Capitão Mor da cidade, bem como do Juiz local.

Não era incomum que o noivo já tivesse tido uma esposa antes. Era o caso do noivo João Antonio, que enviuvara ao perder a mulher, por complicações da gravidez. Nas famílias desta época havia uma “lei” invisível mas severa, que governava o destino das populações do Brasil Colônia. A mulher casava-se relativamente cedo, com menos de 20 anos e em geral, tinha vários filhos. No entanto, a mortalidade infantil era muito alta, seja para ricos ou para pobres, escravos ou livres.

A viuvez era condição comum, tanto a homens quanto para mulheres. Morria-se jovem tanto sendo homem, quanto sendo mulher. O parto era ao mesmo tempo temido e esperado, e por isso era sempre uma loteria. Não por acaso,  essa  hora era entregue nas mãos dos santos que esperava-se, pudessem interceder por aquela que estava para dar à luz.

Neste mês, em que somos bombardeados por todos os lados com mensagens celebrando “o Dia Internacional da Mulher”, escrevo estas mal traçadas também para lembrar uma característica que sempre me chamou atenção na história da mulher brasileira. Ao longo de toda a sua existência de mulheres como Maria Dias , do parto ao túmulo era marcada de uma maneira ou de outra, pela Dor e pela Morte. Arrisco mesmo a dizer que a Morte era uma companheira inefável destas mulheres. De certa forma, aquelas mulheres que subiam ao altar em um lugarejo afastado de tudo e de todos, como era Cabo Frio no século XVII, sabiam que tinham de lidar com a questão da Morte praticamente todos os dias.

Como a Morte visitava estas mulheres? Hoje, no século XXI, estamos acostumados aos relatos de mortes de mulheres vítimas de seus companheiros, ou da violência sexual. Isso ocorria naqueles tempos? Certamente, mas havia outra possibilidade da visita da Morte, e esta era ligada diretamente à maternidade e suas complicações antes, durante e depois do parto.

Creio que esta “Memória da Morte” ficou gravada em muitos rituais que hoje praticamos, mas cujas origens e motivações ficaram na noite dos tempos. Já se disse que tudo aquilo que fazemos em nossa vida cotidiana, mas que esquecemos as suas origens acaba por se tornar “tradição”. Pois a “tradição” de comemorar tão efusivamente o Primeiro Aniversário do filho, guarda por assim dizer, esta memória de uma época em que ter um filho que chegasse a completar um ano de vida era algo a ser comemorado e louvado.

Ter muitos filhos era marca de prosperidade para toda mulher que se casava, mas também era uma escola que ensinava àquelas mulheres a lidar com a perda, de uma maneira muito mais comum do que hoje estamos acostumados. Não é coincidência que sistemas sociais com um alto índice de mortalidade infantil, que ainda existem em várias regiões mais pobres do globo, obrigaram a estas mulheres a desenvolver uma resposta emocional muito diversa daquelas mulheres onde a mortalidade infantil diminuiu.

Tudo isso ocorria em um ambiente social marcado pela pobreza extrema. Os relatos sobre Cabo Frio no período colonial permitem perceber que mesmo aqueles indivíduos considerados na época como “abastados”, eram na verdade despossuídos de muitos bens. Não é de surpreender que o casamento de João Antonio e Maria Dias fosse uma cerimônia muito modesta, bem como a vida que estes levariam dali para frente, marcada por muitas privações.

 Os registros paroquiais da época mostram claramente que havia uma clara intenção das “famílias da terra”, ou seja, as famílias onde a noiva nasceu na região de Cabo Frio preferir casar as suas filhas, com os “Filhos do Reyno”, aqueles rapazes oriundos de Portugal, mas que vieram para o Brasil para conseguirem alguma coisa. Eram pois os casamentos das “filhas de terra, com os filhos do Reyno”. Uma vez casados, os noivos deveriam ter como a nova família, que não tardaria a crescer. Era nesse momento em que entrava em cena, o “dote”, aquela instituição fundamental para a formação de famílias no Brasil colonial.

Por definição, o dote pode ser considerado como uma antecipação da herança que o pai da noiva concedia a ela, para que assim pudesse começar a vida com seu marido. Dependendo da fortuna da família da noiva, este dote era suficiente para que ela pudesse ter uma vida confortável ao lado de seu futuro marido, até o último dia de sua existência.

 Mas fico aqui pensando que tipo de “fortuna”, os pais de Maria Dias, filha de portugueses, mas que nascera “pelos lados do Districto de Saquarema”, como anotou o pároco em seu livro de casamentos, legaram à sua filha. Em um lugar tão pobre quanto Cabo frio no século XVII, o que uma noiva poderia levar de dote para as suas bodas? Terras, é o que parece mais razoável supor. Ao noivo, cabia não apenas zelar pelo dote recebido por sua esposa, mas aumentar o patrimônio da nova família.

Reconhecemos assim, um mecanismo importante de acesso às terras por parte destes colonos. As terras que a noiva trazia para o casamento, por conta do dote eram o ponto de partida para que juntos, o casal ampliasse ainda mais as suas possessões. Ao mesmo tempo, a regra de casar “as filhas da terra, com os filhos do reyno”, garantia a um pequeno número de colonos de origem portuguesa o controle de extensas propriedades, onde ali poderiam ser cultivados produtos valorizados no comércio colonial, como a cana de açúcar, o arroz ou o algodão.

Se pudéssemos dar um significado ao termo “empoderamento”, para um contexto como este, que era o de uma sociedade colonial, este termo era o “dote”. Por mais patriarcal, hierarquizada e escravista que aquela sociedade fosse, o dote permitia àquelas mulheres um mínimo de poder dentro do complexo jogo das relações entre homens e mulheres, pais e filhos, senhores e escravos. Uma mulher com um dote tinha um relativo poder nesta sociedade, onde poder, dinheiro e gênero estavam absolutamente conectados um ao outro.

É claro que o Vigário João Pereira nada disso escreveu no seu registro de 1678. Mas o exame destes registros permitem que esta e outras cenas de casamento nos dêem uma ideia de como viveram e morreram aqueles homens e mulheres neste pedaço do mundo, que naquela época já chamavam Cabo Frio.

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