Há algum tempo atrás, fiquei sabendo de um local pouco conhecido dos turistas que vêm a Cabo Frio. Próxima à Ilha do Japonês, fica um lugar onde encontramos aquilo que o povo denominou de “a Caverna dos Escravos”. Tudo indica que se trata de uma construção feita pelo homem mesmo datada pelo menos do século XIX.
Por quê começo esta coluna falando disso? Em primeiro lugar, para lembrar que esta região, hoje conhecida pela beleza de seu litoral, já foi visitada por conta de outros motivos. O principal deles era o tráfico negreiro. Aquela caverna é uma lembrança que a região de Cabo Frio fez parte, por muito tempo, de uma das atividades comerciais mais lucrativas do mundo moderno, o “infame comércio”, como assim era chamado o tráfico de escravos no século XIX.
É muito fácil hoje nos apegarmos à um localismo que louva as características e os costumes do povo da terra. Até aí, tudo bem. Mas mesmo um lugar afastado como Cabo Frio era no século XIX, não estava a salvo das influências de uma economia que no século XIX, já era global. Durante os séculos XVII e XVIII, o tráfico negreiro foi um negócio que rendeu fortunas a um punhado de nações, como a Inglaterra, Portugal, Espanha, França, Suécia e Holanda e o litoral brasileiro era um destino privilegiado deste comércio. De cada dez escravos saídos do continente africano, pelo menos 4, chegavam a algum porto no Brasil.
No fim do século XVIII, mais precisamente a partir de 1780, surgiu na Inglaterra, um grande movimento de classe média, que condenava claramente a continuidade deste tipo de comércio pelos navios ingleses. Iniciava-se assim, a campanha abolicionista, um dos primeiros grandes movimentos políticos que utilizou muitos elementos que hoje nos são mais do que conhecidos: a sensibilização da opinião pública pela propaganda, o uso da imprensa, a mobilização de setores das classes médias e de trabalhadores, etc.
Por quase 30 anos, estas forças pressionaram o governo inglês a extinguir o comércio de escravos, até que em 1807, o Parlamento Inglês votou a lei que dava fim ao trato negreiro. Quando a Corte de Portugal fugiu do país, escoltada por uma esquadra inglesa, ela já tinha zarpado de Lisboa com a promessa de que, chegando ao Brasil, os portugueses iriam seguir o exemplo inglês.
Como se sabe, não cumpriu integralmente sua parte no acordo e o tráfico negreiro só foi considerado extinto mesmo no Brasil, com o advento da Lei Eusébio de Queiroz, assinada em 1850, ou seja, mais de 40 anos depois dos ingleses terem acabado com o tráfico em sei império. O que aconteceu entre uma data e outra, ajuda a explicar como a região de Cabo Frio entra nessa história.
Em uma carta datada de 1852, do então Juiz de Direito da Comarca de Cabo Frio, endereçada ao Presidente da Província do Rio de Janeiro, encontramos um relato de que aguardava-se a chegada de um grande carregamento de escravos africanos, a aportar em algum ponto da costa de Cabo Frio. O juiz relata que informantes seus ‘ouviram dizer” da chegada do tal navio. Bem, “ouvir dizer” remete à pergunta: de quem, afinal, eles ouviram tal notícia.
Vale dizer que o evento aconteceu dois anos depois da aprovação da lei que extinguiu o tráfico de escravos no Brasil, o que configurava na prática, um crime. Este e outros documentos, mostram que a proibição legal do tráfico não inibiu o contrabando. Mostra também que a região servia de esconderijo para que as embarcações descarregassem estes escravos, a fim de que fossem despachados para seus lugares de destino.
É neste momento que a “caverna dos escravos” entra mais uma vez na história. Muito provavelmente, construções deste tipo serviam a este tipo de propósito, neste ponto da costa do Rio de Janeiro, assim como em outros lugares.
Uma coisa bem interessante é perceber a semelhança entre este tipo de tráfico e outro, desta vez moderno, o “nosso” tráfico de drogas. Explico: quando um grande carregamento de escravos chegava na costa, era comum espalhar a “carga” de escravos em pequenos grupos, a fim de que fossem distribuídos em diferentes casas. Não era difícil por isso, pulverizar um carregamento de 150, 200 escravos, em várias casas da região. Se, por uma eventualidade, algum destes grupos fosse descoberto, os outros poderiam chegar ao seu destino. Era, por assim dizer, uma versão arcaica do “tráfico de formiguinha”, hoje tão comum nas fronteiras do Brasil. Enquanto uma apreensão de cocaína e maconha é realizada, um número desconhecido destas drogas consegue passar pelas fronteiras nacionais.
Reprimir o tráfico de escravos no Brasil era uma tarefa que enfrentava os mesmos problemas de hoje, vigiar uma fronteira de dimensões continentais, com um efetivo policial pequeno e mal equipado. A “caverna dos escravos”, aqui próxima à Ilha do Japonês em Cabo Frio, é uma pequena lembrança daqueles tempos e uma amostra de que os problemas que nos afligem hoje, se parecem com aqueles com que nossos ancestrais se defrontaram.